ARGILA

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila

Às belezas heroicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses.



Raul de Leoni nasceu em Petrópolis, em 30 de outubro de 1895. Em 1913, aos 18 anos, ele parte para Europa, visitando Inglaterra, França, Itália, Espanha e Portugal. Em 1919 publica o seu primeiro livro de poesias, chamado “Ode a um poeta morto”, dedicado a Olavo Bilac.
Da viagem à Europa nasceu sua inspiração para escrever o livro “Luz Mediterrânea” - publicado em 1922, na época da Semana de Arte Moderna - um marco na Literatura Brasileira. Em 1926, com apenas 31 anos, Raul de Leoni morre e é enterrado em Petrópolis.
A crítica brasileira demorou muito em reconhecer o valor de sua obra poética. De Leoni viveu no crepúsculo do século XIX e na aurora do século XX e, por isso, enquanto alguns críticos o consideravam parnasiano, outros pretendiam ver nele um poeta simbolista.
Compôs este soneto - Argila - inspirado nas legendas pagãs, na alma dos faunos, a luz olímpica, o oráculo de Elêusis, símbolos daquela Grécia Antiga, esplendida e tranquila:
"Alma dos faunos" - fauno era uma divindade mitológica campestre, caprípede. Aqui o poeta usa uma metáfora.
Te comparas às belezas heroicas” - como, por exemplo, Helena de Tróia; ou Nausica, amada de Ulisses, o herói da Odisséia; ou a própria Vênus, a deusa da Beleza.
Luz olímpica” - vem das Olimpíadas, originalmente idealizadas pelos gregos da Antiguidade. O nome é uma homenagem ao Olimpo, considerado a "morada dos deuses".
Ouço ao longe o oráculo de Elêusis” - o oráculo era uma espécie de “conselho divino”, que respondia às consultas e orientava os crentes, um hábito muito comum na época
Elêusis é uma região perto de Atenas, de grande fertilidade, onde se realizavam festas em honra de Ceres, a deusa da Agricultura. Vem daí a origem da palavra “cereal”.
A estrutura de qualquer soneto (para quem ainda não sabe) é a seguinte: são quatro estrofes, sendo as duas primeiras compostas de quatro versos e as duas últimas de três. São encerrados com a chamada “chave de ouro”, na beleza e originalidade dos últimos versos.
  “Se um dia eu fosse teu e fosses minha
   O nosso amor conceberia um mundo
   E do teu ventre nasceriam deuses...
Segundo Agripino Grieco, todo brasileiro deveria saber de cor este soneto. É um poema em que a sublimação atingiu tal altitude poética, que o próprio amor erótico se torna de todo transfigurado. Raul de Leoni é um clássico no sentido universal da palavra e este soneto é um poderoso sopro de espírito moderno na linguagem.

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